por Jules Falquet
(versão original em francês: http://www2.univ-paris8.fr/RING/spip.php?article3346)
(versão original em francês: http://www2.univ-paris8.fr/RING/spip.php?article3346)
A mulher que morre se transforma em onça
A mulher que morre com a tempestade retorna
Com a tempestade e com o fulgor do seu pensamento(1)
Nicole-Claude Mathieu nos deixou no dia nove de março de 2014. Uma
teórica fundamental desaparece e, com ela, uma militante decidida e uma
pedagoga generosa. Mas Nicole-Claude Mathieu não morreu: sua égua negra cavalga
ainda entre nós. Sua égua negra? Mais exatamente, ela nos deixa toda uma manada
selvagem que transporta nosso pensamento, com a sua audácia, que exercitou por
quarenta anos. Estas orgulhosas criaturas são, antes de tudo, produto de um
movimento, de lutas e reflexões trazidas pelas mulheres mais variadas do mundo
inteiro, não-ocidental e ocidental, como ela insistia em escrever. Neste
élan coletivo múltiplo, Mathieu colocou em preto sobre branco, texto após
texto, fortes propostas.
Notas por uma
definição sociológica das categorias de sexo (Notes pour une définition sociologique des catégories de sexe, 1971):
antes das análises em termos de “sistema de sexo-gênero” de Gayle Rubin ou Ann
Oakley, dentro da perspectiva bem diferente das "rapports sociaux de
sexe" (2), Mathieu sustenta que mulheres e homens são criadxs e
constituidxs socialmente, não a partir de alguma diferença biológica, mas a
partir de uma relação social global de poder. Esta relação social produz as “classes
de sexo”, definidas dialeticamente em uma dinâmica que a história dos
movimentos sociais faz evoluir. Com Christine Delphy (1970) e depois Colette
Guillaumin (1972), Mathieu inaugura a análise decididamente anti-naturalista
que distinguirá o feminismo materialista francófono. Inicia-se então uma
possível saída das estreitas margens do que Monique Wittig denominará mais
tarde como pensamento straight (a crença cega e ideológica em uma
suposta “diferença sexual”). A partir de 1971, Mathieu nos convida a entrar
em um terreno decididamente sociológico e político –e, assim, coletivo.
Críticas epistemológicas da problemática dos sexos no
discurso etno-antropológico, (Critiques épistémologiques
de la problématique des sexes dans le discours ethno-anthropologique, estado da literatura para a
UNESCO, 1985) é um rigoroso desvelamento das omissões e distorções sucessivas
(delimitação da questão, revisão de dados, interpretação, teorização em geral)
que produz o viés androcêntrico na etno-antropologia. Evidenciando alguns laços
até então não teorizados entre sexismo e racismo, Mathieu sublinha o quanto a
cegueira de alguns/algumas a propósito de sociedades ditas «outras» se pode
compreender como uma negação correlativa de determinados fenômenos na sua
própria sociedade. Além do mais, Mathieu sempre praticou conjuntamente
antropologia e sociologia, impugnando radicalmente a separação colonial
(não-ocidental/ocidental): as relações sociais de sexo atravessam as classes e
as culturas sob modalidades muito variadas. Ela afirma também, desde aquela
época, a importância de não desqualificar radicalmente os trabalhos dos
cientistas “majoritários” (3), mas de avaliá-los e utilizá-los como um ponto de
vista situado, marcado por uma posição específica nas relações de poder.
Quando ceder não é
consentir. Das determinações materiais e psíquicas da consciência dominada das
mulheres (...) (Quand céder
n’est pas consentir. Des déterminants matériels et psychiques de la conscience
dominée des femmes […], 1985): neste texto fundamental,
Mathieu decepa a ideia de que as mulheres, como a planície, consentiriam ser
oprimidas (dominadas) pela montanha. Complementando alguns pontos cegos da
teoria marxista, ela analisa as dificuldades materiais da tomada de consciência
individual e coletiva das minorias. A violência que está sendo feita às
mulheres está longe de ser somente simbólica como, bem mais tarde, Bourdieu
acreditou ter descoberto. Pelo contrário, a violência é sobretudo concreta,
frequentemente cotidiana -ela aparece tanto na subalimentação como nos golpes,
no despojo dos recursos ou na repartição truncada das informações concernentes
à cultura “comum”.
Em Identidade
sexual, sexuada, de sexo? Três modos de relacionar o sexo com o gênero (Identité
sexuelle, sexuée, de sexe ?, 1989),
Mathieu evidencia três modos de conceptualização das relações entre sexo e
gênero em diferentes culturas e grupos sociais não-ocidentais e ocidentais:
- Modo I: Identidade “sexual”, baseada em uma
consciência individualista do sexo. Correspondência homológica entre sexo e
gênero: o gênero traduz o sexo;
- Modo II: identidade “sexuada”, baseada em uma
consciência de grupo. Correspondência analógica entre sexo e gênero: o gênero
simboliza o sexo (e inversamente)
- Modo III: identidade “de sexo”, baseada em uma
consciência de classe. Correspondência sociológica entre sexo e gênero: o
gênero constrói o sexo
Em Deriva de gênero/estabilidade
dos sexos (Dérive du genre/stabilité
des sexes, 1994), Mathieu se interessa especificamente pelas transgressões
do gênero no mundo ocidental (ou em “culturas” aderentes ao Modo I analisado
anteriormente, o mais naturalista). Através do exemplo de Madonna e de uma
leitura dos trabalhos de Butler de 1990 e 1993, Mathieu expõe “uma pesquisa
(Fowley 1994) realizada em Inglaterra com jovens moças brancas, de entre 14 e
16 anos, auto-definidas como heterossexuais e de classe operária (...). Seu
discurso é de uma lucidez que xs universitárixs poderiam invejar, em relação à
assimetria das relações entre os sexos e à impossibilidade concreta para essas
jovens de tomar Madonna como “modelo” para sua vida cotidiana (p. 60). Mathieu
reafirma aqui que o corpo conta, que a anatomia é política e que os corpos
marcados como femininos são sistematicamente situados embaixo da escala de
gênero.
Com Uma casa sem filha é uma casa
morta (Une maison sans fille est une
maison morte (co-editado con Martine Gestin, 2007), Mathieu oferece a
primeira obra de etnologia comparada em francês que tem como variável de base a
uxorilocalidade (4), em quatorze sociedades de filiação seja matrilineal, seja
indiferenciada. Longe de serem matriarcados -uma noção extremamente vaga que
oscila, como Mathieu mostra, entre o fantasma masculino do “revanchismo”
feminino e o argumento exotizante de algumas agências de turismo- essas
sociedades são menos desiguais, no plano dos sexos, que muitas das culturas
ocidentais que as olham com condescendência. A obra permite um melhor
discernimento dos mecanismos pelos quais uma classe de sexo (aqui, as mulheres)
pode obter maior poder ao organizar (de outra forma) a aliança, a filiação e a
residência, assim como o sistema simbólico e material de transmissão, no quadro
mais favorável de matrilinealidade e da uxorilocalidade. Assim, entre os
Kavalan (Taiwan) havia até os anos quarenta a absoluta convicção de que era a
deusa que colocava a semente das crianças no ventre das mulheres e que logo a
regava. Em seus mitos de origem, sobretudo, a morte do pai não era, como
afirmava Maurice Godelier em 1996, o pilar da exogamia que funda o laço social,
mas “a negação da transmissão de poder e de objetos materiais ou riqueza entre
um pai e seus filhos” (p. 394). Assim, “o grupo de homens é privado de se
apropriar e de acumular riquezas. Desta forma, os homens não constituem nem uma
unidade de produção, nem uma unidade de consumo (...) no interior deste grupo,
cada indivíduo deve merecer seu status” (p. 395). Homens que devem merecer
individualmente seu status? Com isso, o bastião último do pensamento é
pulverizado...
É impossível sublinhar aqui a profundidade de cada uma das contribuições
de Mathieu, cujo rigor, implacável construção e amplitude de perspectiva não podem
deixar indiferente. Felizmente, A
anatomia política.... acaba de ser republicada na editorial iXe e Mathieu
trabalhou duramente para terminar, antes de partir, uma segunda antologia de seus
principais textos, a qual aparecerá muito proximamente na editorial La Dispute. E , após esse
último trabalho, ela soltou as amarras. A nós, restam-nos as éguas indomadas,
que nos levam a outros mundos possíveis.
Notas
(1) Velha máxima feminista
(2) A tradução usual de “rapports” para o português é
“relações” (de classe, “raça”, sexo etc.), mas optamos aqui por deixar o termo
em francês por compreender que ela não seria suficiente para explicar o
pensamento da autora. Em francês, “rapports” trata das ligações estruturais da
sociedade, em nível macro, enquanto a expressão “relations”, que também é
traduzida como “relações” diz respeito às relações cotidianas, em nível micro
(N. da R.).
(3) O conceito de majoritarixs e minoritarixs se encontra
em Guillaumin para se referir aos grupos socialmente poderosos ou não. Por exemplo:
os homens são majoritários no que diz respeito às mulheres.
(4) Uxorilocal: relativo ao casal cujo esposo, após a
união matrimonial, vem habitar no âmbito sociocultural da esposa.
Tradução: Danilo Assis Clímaco, revisão: Jules Falquet
Publicar em português este texto de Jules
Falquet é uma forma de homenagear Mathieu. Aprecio muito o que aprendi dos
relativamente poucos textos dela que li, mas mais do que isso, percebo que há
em seu pensamento uma força que somente poderá ser mais compreensível dentro de
um debate coletivo latino-americano sobre o feminismo materialista francês, o
qual já começou há alguns anos, cabendo aqui divulgar algumas de suas mais
importantes publicações:
El patriarcado al desnudo.
Tres feministas materialistas. Colette Guillaumin, Nicole Claude Mathieu et
Paola Tabet.
Buenos Aires, Brecha Lésbica,
2006 (editado e prologado por Ochy Curiel e Jules Falquet):
Jules Falquet, cujo trabalho político e
teórico é feito em grande parte na América Latina (Brasil incluído) tem um blog
com numerosos textos em nossas línguas: http://julesfalquet.wordpress.com/selection-darticles-dautres-auteurs/, incluído um sobre Mathieu: “Hacia una anatomía de las
clases de sexo: Nicole-Claude Mathieu o la conciencia de l@s oprimid@s”: http://julesfalquet.files.wordpress.com/2010/05/trad-esp-mon-art-ncm-10-000.doc, cuja versão em português
será publicada proximamente na revista
brasileira Lutas Sociais.
E finalmente, a introdução do também
denominado Tres feministas materialistas,
editado no Chile em dois volumes por Marie-Claire Caloz-Tschopp e Teresa Veloso Bermedo, que consta principalmente
de textos de Mathieu, Tabet e Guillaumin, mas também com de autoras latinoamericanas: http://es.scribd.com/doc/122431060/VOL-I-Tres-Feministas-Materialistas-Indice
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